sábado, 10 de julho de 2010

Na noite de ontem pra hoje

Na noite de ontem para hoje, embora tivesse planejado acordar e escrever outra coisa para colocar neste espaço, sonhei que estava participando da gravação de uma novela de televisão. Eu fazia um extra ou personagem secundário, e por alguma razão (como na sequência climática deTootsie) aquele capítulo da novela, que representava um baile de gala ou uma festa, estava sendo transmitido ao vivo. Alguns segundos dentro daquela situação e senti-me compelido a aproveitar-me de que a cena era ao vivo e denunciar diante das câmeras – ignoro se por diversão, iconoclastia ou para alertar atores e espectadores, que poderiam ter-se esquecido de algum nível superior de realidade – de que aquilo era uma novela, e não a vida real que se propunha a representar.«Mas uma novela se passa dentro da televisão.» De alguma forma eu permanecia convencido, mesmo no sonho, de que a fim de elucidar a realidade fazia sempre sentido recorrer à metalinguagem – uma linguagem usada para se fazer referência às declarações de outra linguagem. Avancei até o casal principal, que caminhava entre pares a três passos das câmeras, e disse bruscamente alguma coisa inequívoca sobre o fato de que tudo ao nosso redor não passava de cenário, e éramos todos ali atores gravando uma cena de novela. – Mas uma novela se passa dentro da televisão – sorriu o protagonista, tentando esquivar-se do embaraço – e nós estamos aqui na vida real. – Engano seu – eu disse, e caminhei até uma das câmeras. Toquei com a ponta dos dedos a lente – Nós estamosdentro da televisão. Estão nos vendo aqui dentro, pessoal? E enquanto fazia isso imaginava os espectadores me vendo falando diretamente com eles, ao mesmo tempo salvos da farsa e indignados comigo porque tinham participado voluntariamente dela. Acordei sobressaltado, porque intuíra que aquela era uma denúncia que podia ser feita em absolutamente todos os níveis de linguagem. A comunicação é consistentemente uma farsa; nenhuma denúncia é clara, pelo que nenhuma denúncia é suficiente. Ali mesmo, no suor da cama, eu era por antecipação prisioneiro da metalinguagem. Assim que articulasse a memória do meu sonho, estaria acrescentando a ela uma camada não-intencional de artificialidade. Quando colocasse o sonho por escrito (como estou fazendo agora) deitaria sobre ele uma camada adicional de ruído. Camadas adicionais de imprecisão seriam acrescidas a esse material quando ele fosse lido, interpretado e transmitido aos outros, e assim até o infinito. As tentativas que fazemos de esclarecer nosso conteúdo terminam por obscurecê-lo, e os esforços que empreendemos para representar com mais clareza a realidade acabam trabalhando para falsificá-la. À salvo de todas as denúncias, o que há de mais real nisso tudo é a história inventada (de que não me lembro) que representavam os atores sem carne na novela do meu sonho e acompanhavam seus espectadores inexistentes; todo resto é inconsequente e intransmissível. Minha tentativa de denunciar a fantasia não foi capaz de esconder que as palavras que escolhi para denunciá-la são fantasia ainda maior. A lenda é mais verdadeira do que o jornal, a narração desbanca a teologia, a metafísica vence a ciência. Porém, em termos estritos, somente a verdade à salvo da linguagem é – ou seria, se existisse – a verdade. Somos, muito evidentemente, prisioneiros de carne no cárcere da linguagem. Esta redoma nos limita e classifica pelo menos tanto quanto aos atores encarcerados no vidro da televisão. Daqui de dentro, na cela solitária das palavras, somos como os que procuram ser entendidos enquanto berram e gesticulam do outro lado de uma janela à prova de som. Os outros podem ver que estamos falando, mas não podem absolutamente entender o que estamos dizendo. E chorei, porque não havia ninguém capaz de abrir este livro. 


fonte: a bacia das almas

PS: esse texto não é meu, então não deveria constar nessas "viagens ao passado" .... mas esse texto é bom demais e não resisti!

Um comentário:

... disse...

jurava que era um texto seu!